08.09.20

Andrey Henrique Andreolla

CRIMINOLOGIA CULTURAL E MÍDIA: apontamentos introdutórios



Uma relação que há tempos é motivo de debates e estudos é a que envolve mídia e crime, e como um influencia o outro no dia a dia. Várias abordagens foram realizadas no intuito de explicar essa complexa relação. A criminologia cultural atua neste sentido, já que um de seus aspectos é o de buscar entender como a ação da mídia se entrelaça com a criminalidade.

A criminologia cultural surgiu ao final da década de 90, nos Estados Unidos da América, com Ferrell, e, posteriormente, foi desenvolvida pelo Departamento de Criminologia da Universidade de Kent, na Inglaterra. A ela, interessa um estado emocional que é denominado de "carregado", onde a real experiência no cometimento de um crime tem pouca relação com as teorias da escolha racional, mas adota a adrenalina, o prazer e o pânico envolvidos em verdadeiras equações para a conduta delitiva. Raramente o crime é desinteressante, e sempre possui um grande significado. (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2008).

Katz (1988), por exemplo, quando ensina sobre o crime, aponta que ele não se trata somente de aquisição, materialismo ou necessidades financeiras, mas se reveste de presença, status e emoções (como paixão, ódio, adrenalina, etc.), envolvendo a assunção de riscos e perigos, que podem representar uma tentativa de superar circunstâncias sociais degradantes, a fim de exercer controle e assumir a responsabilidade do próprio destino.

A criminologia cultural, portanto, é uma matéria interdisciplinar, que não se utiliza apenas das ferramentas da Criminologia, do Direito Penal e da Sociologia, masa também de aspectos relativos a estudos culturais, midiáticos, urbanos, filosóficos, de movimentos sociais, da teoria crítica pós-moderna, da geografia e da antropologia humana, além de abordagens de pesquisa ativa (ROCHA, 2012). A sua responsabilidade é "manter 'girando o caleidoscópio' sobre as maneiras pela qual pensamos o crime, e, mais importante, sobre as respostas jurídicas e sociais à quebra de regras" (HAYWARD, 2011). Logo, a fim de se estudar a questão do crime e da criminalização, é muito importante considerar a dinâmica dos meios de comunicação de massa (FERRELL, 1995).

Conforme Jewkes (2011) demonstra, os estudos acerca da relação entre mídia e crime são antigos, e datam da década de 60. Procurava-se entender como a mídia poderia conduzir a um comportamento antissocial, desviante ou criminoso. Acreditava-se que a sociedade teria se tornado mais violenta com o advento da indústria midiática, já que tais meios teriam intensificado a ansiedade do público. A maioria das abordagens era de conotação negativa, pois apontava os malefícios causados pelos meios de comunicação, ao passo que existiam outras, positivas, que apontavam para a variedade de programas disponíveis e a disseminação de cultura em consequência disso, possibilitando, assim, ao telespectador mudar de canal sempre que assim desejasse. Entretanto, tais abordagens ainda eram insuficientes, e é nesse ponto que se desenvolve a relação entre criminologia cultural e mídia, de forma a superar as correntes linhas de investigação existentes e a procurar identificar os diversos caminhos em que os processos de produções visuais e trocas culturais constituem, atualmente, a própria experiência do crime (HAYWARD, 2011).

Uma das preocupações da criminologia cultural, no que diz respeito à relação entre crime e mídia, reside nas peculiaridades das interações entre os indivíduos e o consumismo, que se utiliza da ideia que o indivíduo deve viver de acordo com certos padrões para ser considerado exitoso em sua vida (MASI; MOREIRA, 2014). Conforme Masi e Moreira (2014), busca-se entender de que forma atua a influência desse tipo de mensagem midiática sobre o jovem que, inserido em uma classe de baixa renda, induz à ideia da prática delitiva como único meio para inserir-se no status desejado. A experiência ilícita torna-se gratificante, pois propicia o auferimento do objeto de desejo e a consequente inserção do indivíduo no campo social que almeja.

Além disso, há também a situação do crime como produto de consumo. Já ensinava Nietzsche (2009) que, desde a antiguidade, em vários festivais e cerimônias nobres, se realizavam atos de crueldade, execuções, suplícios e sacrifícios. Atualmente, a violência é vendida, assistida, reproduzida e gravada, sendo consumida como entretenimento (STREHLAU, 2012). Assim, "nos processos de construção do crime e do controle da criminalidade enquanto preocupações sociais e controvérsias políticas, a mídia também os constrói como forma de entretenimento" (FERRELL, 1999, p. 407). Válida e importante a citação de Ferrell, Hayward e Young (2008, pp. 123-4), quando dizem que "nesse mundo, as ruas moldam as telas e as telas moldam as ruas; não há, claramente, uma sequência linear, mas, ao invés, uma constante interação entre real e virtual, entre factual e ficcional". É uma verdadeira sociedade do espetáculo, no conceito utilizado por Guy Debord (1997).

[...] hoje, enquanto criminosos gravam seus crimes e os publicam no YouTube, enquanto agentes de segurança pública examinam a formação de imagens dos criminosos em milhões de monitores de vigilância em todo o mundo, enquanto grupos rebeldes publicam compilações de vídeos (filmados de vários ângulos) de bem-sucedidos atentados suicidas e detonações de Artefatos Explosivos Improvisados (bombas caseiras) à beira de estrada, enquanto imagens de brutalidade e vitimização surgem em telas de computadores nos ambientes de trabalho e em aparelhos celulares de crianças, enquanto Reality Shows levam seus observadores de forma cada vez mais profunda no mundo das “batidas policiais” e dos ambientes prisionais, não pode haver outra opção senão desenvolver uma exaustiva criminologia visual. (HAYWARD, 2010, p. 2).

As imagens e os diversos programas das mídias estão muito presentes na sociedade atual. Portanto, deve-se atentar para outro ponto importante nesta temática: as notícias e a forma pela qual elas são transmitidas ao grande público.

Todos os dias, manchetes de jornais clamam pela atenção, ao contar histórias sobre a criminalidade e que mais parecem designadas a chocar e assustar os telespectadores, ao mesmo tempo em que passam uma sensação de alívio, por não serem eles as vítimas daquela violência. Entre 1986 e 1990, os meios de comunicação na cidade de Nova York construíram uma imagem convincente da realidade em que a violência relacionada à droga estava se espalhando e tornando-se aleatória na seleção das vítimas. Ao fazê-lo, encorajou a crença na crescente vulnerabilidade das pessoas brancas e de classe média diante dessa violência (BROWNSTEIN, 1995). Tal caso se mostrou um exemplo de como a mídia, operando em um contexto político particular, efetivamente apoiou a ideologia das políticas governamentais para que estas, de certa forma, se legitimassem.

A mídia de notícias, buscando uma história sensacionalista que vendesse as notícias e não contradissesse as polícias, de quem dependia para obter informações, mobilizou a classe média branca com ênfase no tema da violência aleatória das drogas. Diante de um público de votação, alarmado, que pedia lei e ordem, funcionários do governo promoveram um susto quanto às drogas, que permitiria gastos em programas de aplicação da lei durante um período de crise fiscal e prisões superlotadas (BROWNSTEIN, 1995, p. 60).

Assim, a mídia transforma-se em uma espécie de aparelho do próprio processo de controle, uma espécie de aparelho ideológico do Estado (HALL et al, 1978). Crime e violência são transformados em produtos baratos, vendidos como entretenimento e definindo estereótipos. Como diria Bauman, “o combate ao crime, como o próprio crime e particularmente o crime contra os corpos e a propriedade privada, dá um excelente e excitante espetáculo, eminentemente assistível” (BAUMAN, 1999, p. 126).

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

BROWNSTEIN, Henry H. The Media and the Construction of Random Drug Violence. In: FERRELL, Jeff; SANDERS, Clinton R (editors). Cultural Criminology. Boston, Massachusetts: Northeastern University Press, 1995.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FERRELL, Jeff. Cultural Criminology. Annu. Rev. Social., v. 5, p. 395-418, 1999.

FERRELL, Jeff. Culture, Crime and Cultural Criminology. In.: Journal of Criminal Justice and Popular Culture, 3 (2) (1995), pp. 25-42. Disponível em: http://www.albany.edu/scj/jcjpc/vol3is2/culture.html. Acesso em: 11 de setembro de 2017.

FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith; YOUNG, Jock. Cultural Criminology: an invitation. Los Angeles; London: SAGE, 2008.

HALL, Stuart; CRITCHER, Chas; JEFFERSON, Tony; CLARKE, John; ROBERTS, Brian. Policing the Crisis: Mugging, the state, and law and order. London and Basingstooke: The Macmillan Press Ltd., 1978.

HAYWARD, Keith. Definition of Cultural Criminology. In.: The dictionary of Youth Justice. Disponível em: https://blogs.kent.ac.uk/culturalcriminology/files/2011/03/youth-justice-dictionary.pdf. Acesso em: 11 de setembro de 2017.

HAYWARD, Keith. Opening the lens: cultural criminology and the image. In: HAYWARD, Keith; PRESDEE, Mike (Eds.). Framing Crime: cultural criminology and the image. New York: Routledge, 2010.

JEWKES, Yvonne. Media & Crime. London/California/New Delhi/Singapore: SAGE Publications, 2011.

KATZ, Jack. The Seductions of Crime: Moral and Sensual Attractions in Doing Evil, New York: Basic Book, 1988.

MASI, Carlos Velho; MOREIRA, Renan da Silva. Criminologia cultural e mídia: um estudo da influência dos meios de comunicação na questão criminal em tempos de crise. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 22, n. 108, p. 437-460, mai/jun. 2014.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ROCHA, Álvaro Filipe Oxley da. Crime, Violência e Segurança Pública como produtos culturais: inovando o debate. In. Revista dos Tribunais, ano 101, vol. 917, março 2012, pp. 271-289.

STREHLAU, Juliana. Criminologia Cultural. Disponível em: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2012_2/juliana_strehlau.... Acesso em: 12 de outubro de 2017



Andrey Henrique Andreolla Professor universitário na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI - Campus de Erechim. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Graduado em Direito pela URI – Campus de Erechim. Coautor e coorganizador do livro "Violência, Crime e Segurança Pública: Perspectivas Contemporâneas em Ciências Criminais". Presidente da Comissão Especial de Direito Penal e Processo Penal da OAB/RS Subseção Erechim. Conselheiro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul - ACRIERGS. Presidente da Comissão Especial da Jovem Advocacia Criminal da ACRIERGS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM), periódico do IBCCRIM. Advogado Criminalista.