NOTA DE REPÚDIO
As diretorias da ABRACRIM-RS e da ACRIERGS vêm a público para repudiar veementemente o “Parecer do Grupo de Trabalho COVID-19 nº 01/2020”, do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (CREMERS), onde a entidade que representa os médicos gaúchos, em consulta formulada pelo MPRS, manifestou o seguinte:
1. Que, da leitura da Nota Técnica nº 02/2020, estariam sendo executadas no sistema prisional do Rio Grande do Sul as medidas preconizadas pelo Ministério da Justiça, as quais estariam embasadas nas orientações do Ministério da Saúde;
2. Que, com a identificação, monitoramento e isolamento dos casos identificados de COVID-19, com prioridade para os custodiados pertencentes aos grupos de risco, “o perigo de contágio entre os custodiados, inclusive, é significativamente menor do que o da população em geral”.
3. Que “a manutenção dos custodiados em ambiente prisional, principalmente daqueles que pertencem ao grupo de risco, é a medida que se apresenta mais segura no atual contexto”.
4. Que o deslocamento em via pública de idosos em vários municípios do Rio Grande do Sul está sendo restringida, o que dificultaria a subsistência dos custodiados, “situação que deprime o sistema imunológico de qualquer ser humano”.
5. Que as medidas preconizadas pela Portaria Interministerial nº 07, de 18/03/2020, e Nota Técnica nº 02/2020 estão de acordo com as orientações do Ministério da Saúde e “se mostram suficientes a resguardar os custodiados (provisórios e definitivos) que se encontram no grupo de risco”.
Por fim, “recomendou” o Grupo de Trabalho destacado pelo CREMERS que “durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública, os custodiados, principalmente aqueles pertencentes ao grupo de risco, mantenham-se recolhidos no Sistema Prisional, ambiente no qual sua condição de saúde é constantemente monitorada”.
A manifestação exarada pelo CREMERS dá a entender que, no período de pandemia que vivenciamos, o ambiente prisional seria mais favorável e seguro ao ser humano do que a prisão domiciliar. Tal posição, além de flagrantemente atentar contra a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da CF), desconsidera a inegável realidade do sistema carcerário gaúcho. E isso sem qual-quer respaldo em literatura médica abalizada ou dado empírico que permita verificação.
O sistema carcerário idealizado pelo CREMERS, onde os presos teriam sua condição de saúde “constantemente monitorada” seria, de fato, aquele preconizado pela Constituição Federal, pelos Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário e pela Lei de Execução Penal. Contudo, tal sistema nunca existiu, o que só se pode cogitar ser informação desconhecida pelo Grupo de Trabalho que elaborou a manifestação. Do contrário, seria inaceitável manifestação deste teor de uma entidade que representa justamente os médicos, aqueles que fizeram o “Juramento de Hipócrates”, prometendo consagrar suas vidas ao serviço da Humanidade, bem como guardar respeito absoluto pela Vida Humana. Este respeito, com a máxima vênia, não é, sob nenhuma hipótese, o que se observa em nossas penitenciárias.
As inúmeras denúncias de violações sistemáticas de direitos humanos nas penitenciárias do Rio Grande do Sul arrastam-se há muitos anos e são motivo de consternação internacional para o Estado, que já teve o pior presídio do Brasil denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
O próprio CREMERS tem conhecimento de tais circunstâncias, uma vez que, no ano de 2012, realizou visitas de fiscalização que deram origem à denúncia à Organização dos Estados Americanos (OEA), conforme documentos que seguem anexos à presente nota. Portanto, desde aquela época, o CREMERS sabe da precariedade do atendimento médico nos presídios gaúchos, cenário que não sofreu efetiva transformação.
Neste contexto, em 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro (ADPF nº 347). Na mesma linha, o Conselho Nacional de Justiça aprovou recentemente a Recomendação nº 62, de 17/03/2020, constatando “o alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus e o agravamento significativo do risco de contágio em estabelecimentos prisionais e socioeducativos, tendo em vista fatores como a aglomeração de pessoas, a insalubridade dessas unidades, as dificuldades para garantia da observância dos procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, insuficiência de equipes de saúde, entre outros”.
Fechar os olhos para esta realidade é aceitar o verdadeiro genocídio que ocorre em nossas prisões, onde o próprio Estado, por sua omissão, é conivente com a disseminação de todo tipo de doenças, resultantes não só do precário atendimento de saúde, mas das condições desumanas a que os encarcerados estão submetidos.
A Constituição Federal apregoa que todos são iguais perante a lei (art. 5º) e o Código Penal brasileiro assegura que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade (art. 38). Além disso, a Lei de Execução Penal garante ao preso a assistência à saúde (arts. 11, II; 14; e 41, VII) e o respeito a sua integridade física e moral (art. 40).
Por tudo isso, nós, advogados e advogadas criminalistas do Rio Grande do Sul, testemunhas da verdade acerca do sistema prisional gaúcho, repudiamos as conclusões do CREMERS e conclamamos a entidade a apresentar os dados científicos que respaldam seu posicionamento, caso existam.
Porto Alegre, 31 de março de 2020.
Raccius Potter
Presidente da ABRACRIM-RS
Carlo Velho Masi
Vice-presidente da ABRACRIM-RS
Ivan Pareta Júnior
Presidente da ACRIERGS
Dineia Anziliero
Vice-presidente da ACRIERGS